domingo, 14 de dezembro de 2008

VERDADES E MENTIRAS DE FELLINI

Por CARLOS ALBERTO MATTOS
15/7/2008

Chegou há pouco às lojas e locadoras um DVD reunindo I Clowns, um dos filmes menos conhecidos de Fellini no Brasil, e um extra com status de título principal, o documentário Federico Fellini – Eu Sou um Grande Mentiroso. Ambos lidam com a questão da verdade e da mentira, cada um à sua maneira.

Em I Clowns (1971), Fellini recorre a um estratagema metalingüístico que já havia utilizado em Block-Notes di un Regista (1969) e usaria de novo em Roma (1972). O filme se desenrola durante uma filmagem – não de maneira ficcional e completamente controlada como em Oito e Meio, mas guardando um certo sabor de improviso e experimentação. Talvez seja esse o filme mais experimental de quantos Fellini realizou, seja pela adesão ao ritmo do circo, seja pela falta de preocupação com a tal história do princípio, meio e fim.

Para pesquisar, em Itália e França, sobre um suposto desaparecimento da inocência dos palhaços antigos, Fellini cria uma equipe fictícia, que emula os princípios clownescos. O cinegrafista é um abilolado, assim como a assistente e o soundman vesgo. A suposta repórter-narradora é uma trapalhona de carinha bonita e mãos cheias de papéis manuscritos. Sob o comando do próprio Fellini em cena, essa equipe do filme-dentro-do-filme interage com velhos palhaços, empresários de circo, além de prestar homenagens indiretas a Chaplin (sua filha Victoria aparece numa ponta) e à obra do próprio Fellini (Anita Ekberg associada às panteras).

O elo autobiográfico, explorado apenas no início do filme, vincula os palhaços à constelação de figuras pitorescas de uma província fascista que está na raiz da formação de Fellini. A mania da transgressão o fez amar todo tipo de contraste, especialmente o da alegria com a tristeza. Daí que essa pesquisa nostálgica vai inevitavelmente ao encontro da morte, transformada por sua veia jocosa em mais um motivo de riso. E o cinema (ou, no caso, a TV), visto assim nesse descompromisso com a seriedade, ganha ares de gostosa palhaçada.

A idéia do contraste (sinceridade/fraude, liberdade/constrição, medo/coragem) se espalha à vontade nos depoimentos reunidos pelo canadense Damian Pettigrew em Eu Sou um Grande Mentiroso. Fellini era excelente entrevistado porque pensava grande, sem se ater ao meramente episódico. Pettigrew arranca dele reflexões densas sobre o ato criador e até a confissão (mais explicitada por Terence Stamp) de que tomava ácido “controladamente”. Stamp conta histórias extraordinárias de quando filmou Histórias Extraordinárias, enquanto Donald Sutherland (Casanova) não mede palavras para dizer que Fellini, com os atores, era “um torturador, uma criança mimada”. Sutherland, aliás, faz ótima comparação de Fellini a Orson Welles. Segundo ele, ambos criaram uma mentira sobre si mesmos na qual todos acreditaram.

Além de ouvir colaboradores de Fellini e o escritor Italo Calvino, Pettigrew fez um trabalho fantástico de edição de trechos de filmes que ilustram em profundidade o pensamento do diretor. Com destaque, é claro, para Oito e Meio, este que considero o melhor filme do mundo. Imagens de Rimini e Roma, colhidas em 2002, criam belos diálogos com as locações de cenas antológicas de Fellini. De quebra, ficamos conhecendo parte de uma seqüência excluída da montagem de Casanova, em que o protagonista tem envolvimento amoroso com um homem.

Em resumo, um documento inestimável sobre o cinema em sua concepção mais exuberante e ao mesmo tempo mais pessoal.

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